segunda-feira, 15 de outubro de 2012

O medo...



O Medo
(Carlos Drumond de Andrade)


Em verdade temos medo.
Nascemos no escuro.
As existências são poucas;
Carteiro, ditador, soldado.


Nosso destino, incompleto.


E fomos educados para o medo.


Cheiramos flores de medo.


Vestimos panos de medo.


De medo, vermelhos rios


Vadeamos.


Somos apenas uns homens e a natureza traiu-nos.


Há as árvores, as fábricas,


Doenças galopantes, fomes.


Refugiamo-nos no amor,


Este célebre sentimento,


E o amor faltou: chovia,


Ventava, fazia frio em São Paulo.


Fazia frio em São Paulo...


Nevava.


O medo, com sua capa,


Nos dissimula e nos berça.


Fiquei com medo de ti,


Meu companheiro moreno.


De nos, de vós, e de tudo.


Estou com medo da honra.


Assim nos criam burgueses.


Nosso caminho: traçado.


Por que morrer em conjunto?


E se todos nós vivêssemos?


Vem, harmonia do medo,


Vem ó terror das estradas,


Susto na noite, receio


De águas poluídas. Muletas


Do homem só.


Ajudai-nos, lentos poderes do


Láudano.


Até a canção medrosa se parte,


Se transe e cala-se.


Faremos casas de medo,


Duros tijolos de medo,


Medrosos caules, repuxos,


Ruas só de medo, e calma.


E com asas de prudência


Com resplendores covardes,


Atingiremos o cimo


De nossa cauta subida.


O medo com sua física,


Tanto produz: carcereiros,


Edifícios, escritores,


Este poema,


Outras vidas.


Tenhamos o maior pavor.


Os mais velhos compreendem.


O medo cristalizou-os.


Estátuas sábias, adeus.


Adeus: vamos para a frente,


Recuando de olhos acesos.


Nossos filhos tão felizes...


Fiéis herdeiros do medo,


Eles povoam a cidade.


Depois da cidade, o mundo.


Depois do mundo, as estrelas,


Dançando o baile do medo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário